Um pouco de poesia lusófona

Celebramos no último 5 de maio, o dia da Língua Portuguesa, “a última flor do Lácio”… então proponho que postemos aqui um poema lusófono em homenagem ao nosso maravilhoso idioma… afinal de contas, nossa poesia é maravilhosa e somos os únicos capazes de sentir saudade,

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Contemplo o lago mudo

Contemplo o lago mudo

Que uma brisa estremece.

Não sei se penso em tudo

Ou se tudo me esquece.

O lago nada me diz.

Não sinto a brisa mexê-lo.

Não sei se sou feliz

Nem se desejo sê-lo.

Trémulos vincos risonhos

Na água adormecida.

Por que fiz eu dos sonhos

A minha única vida?

Fernando Pessoa

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Café Orfeu

Nunca tinha caído
de tamanha altura em mim
antes de ter subido
às alturas do teu sorriso.

Regressava do teu sorriso
como de uma súbita ausência
ou como se tivesse lá ficado
e outro é que tivesse regressado.

Fora do teu sorriso
a minha vida parecia
a vida de outra pessoa
que fora de mim a vivia.

E a que eu regressava lentamente
como se antes do teu sorriso
alguém (eu provavelmente)
nunca tivesse existido.

Manuel António Pina
(in Poesia Reunida)


Excelente iniciativa, Carlos ( @ceoramalho )

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AUTOPSICOGRAFIA

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas da roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama o coração.

FERNANDO PESSOA

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Cavalo à Solta

Minha laranja amarga e doce
Meu poema feito de gomos de saudade
Minha pena pesada e leve
Secreta e pura
Minha passagem para o breve
Breve instante da loucura
Minha ousadia, meu galope, minha rédia,
Meu potro doido, minha chama,
Minha réstia de luz intensa, de voz aberta
Minha denúncia do que pensa
Do que sente a gente certa
Em ti respiro, em ti eu provo
Por ti consigo esta força que de novo
Em ti persigo, em ti percorro
Cavalo à solta pela margem do teu corpo
Minha alegria, minha amargura,
Minha coragem de correr contra a ternura
Minha laranja amarga e doce
Minha espada, meu poema feito de dois gumes
Tudo ou nada
Por ti renego, por ti aceito
Este corcel que não sussego
À desfilada no meu peito
Por isso digo canção castigo
Amêndoa, travo, corpo, alma
Amante, amigo
Por isso canto, por isso digo
Alpendre, casa, cama, arca do meu trigo
Minha alegria, minha amargura
Minha coragem de correr contra a ternura
Minha ousadia, minha aventura
Minha coragem de correr contra a ternura (2x)

JOSÉ CARLOS ARY DOS SANTOS

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Surdina

Quem toca piano sob a chuva,

na tarde turva e despovoada?

De que antiga, límpida música

recebo a lembrança apagada?

Minha vida, numa poltrona

jaz, diante da janela aberta.

Vejo árvores, nuvens – é a longa

rota do tempo, descoberta.

Entre os meus olhos descansados

e os meus descansados ouvidos,

alguém colhe com dedos calmos

ramos de som, descoloridos.

A chuva interfere na música.

Tocam tão longe ! O turvo dia

mistura piano, árvore, nuvens,

séculos de melancolia…

Cecília Meireles

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As Palavras

São como um cristal,
as palavras.
Algumas, um punhal,
um incêndio.
Outras,
orvalho apenas.

Secretas vêm, cheias de memória.
Inseguras navegam:
barcos ou beijos,
as águas estremecem.

Desamparadas, inocentes,
leves.
Tecidas são de luz
e são a noite.
E mesmo pálidas
verdes paraísos lembram ainda.

Quem as escuta? Quem
as recolhe, assim,
cruéis, desfeitas,
nas suas conchas puras?

Eugénio de Andrade
in Até Amanhã

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Vozes-mulheres

A voz de minha bisavó
ecoou criança
nos porões do navio.
ecoou lamentos
de uma infância perdida.

A voz de minha avó
ecoou obediência
aos brancos-donos de tudo.

A voz de minha mãe
ecoou baixinho revolta
no fundo das cozinhas alheias
debaixo das trouxas
roupagens sujas dos brancos
pelo caminho empoeirado
rumo à favela.

A minha voz ainda
ecoa versos perplexos
com rimas de sangue
e
fome.

A voz de minha filha
recolhe todas as nossas vozes
recolhe em si
as vozes mudas caladas
engasgadas nas gargantas.
A voz de minha filha
recolhe em si
a fala e o ato.
O ontem – o hoje – o agora.
Na voz de minha filha
se fará ouvir a ressonância
o eco da vida-liberdade.

Conceição Evaristo

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Sou um apaixonado pela poesia de Sophia de Mello Breyner Andresen e as descobri tão recentemente, se comparado a outros grandes nomes da poesia portuguesa…

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Amigos cento e dez, e talvez mais,
Eu já contei. Vaidades que eu sentia!
Supus que sobre a terra não havia
Mais ditoso mortal entre os mortais.

Amigos cento e dez, tão serviçais,
Tão zelosos das leis da cortesia,
Que eu, já farto de os ver, me escapulia
Às suas curvaturas vertebrais.

Um dia adoeci profundamente.
Ceguei. Dos cento e dez houve um somente
Que não desfez os laços quase rotos.

Que vamos nós (diziam) lá fazer?
Se ele está cego, não nos pode ver…
Que cento e nove impávidos marotos!

Camilo Castelo Branco

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A rosa de Hiroxima

Rio de Janeiro , 1954

Pensem nas crianças
Mudas telepáticas
Pensem nas meninas
Cegas inexatas
Pensem nas mulheres
Rotas alteradas
Pensem nas feridas
Como rosas cálidas
Mas oh não se esqueçam
Da rosa da rosa
Da rosa de Hiroxima
A rosa hereditária
A rosa radioativa
Estúpida e inválida
A rosa com cirrose
A antirrosa atômica
Sem cor sem perfume
Sem rosa sem nada.

Vinícius de Moraes

 Biografia do orvalho

A maior riqueza do homem é a sua incompletude.
Nesse ponto sou abastado.
Palavras que me aceitam como sou — eu não
aceito.
Não aguento ser apenas um sujeito que abre
portas, que puxa válvulas, que olha o relógio, que
compra pão às 6 horas da tarde, que vai lá fora,
que aponta lápis, que vê a uva etc. etc.
Perdoai.
Mas eu preciso ser Outros.
Eu penso renovar o homem usando borboletas.

Manoel de Barros
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Os poemas

Os poemas são pássaros que chegam
não se sabe de onde e pousam
no livro que lês.
Quando fechas o livro, eles alçam vôo
como de um alçapão.
Eles não têm pouso
nem porto;
alimentam-se um instante em cada
par de mãos e partem.
E olhas, então, essas tuas mãos vazias,
no maravilhado espanto de saberes
que o alimento deles já estava em ti…

Mário Quintana
(in Poesia Completa)

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A Lua foi ao Cinema – Paulo Leminski

A lua foi ao cinema,
passava um filme engraçado,
a história de uma estrela
que não tinha namorado.
Não tinha porque era apenas
uma estrela bem pequena,
dessas que, quando apagam,
ninguém vai dizer, que pena!
Era uma estrela sozinha,
ninguém olhava para ela,
e toda a luz que ela tinha
cabia numa janela.
A lua ficou tão triste
com aquela história de amor,
que até hoje a lua insiste:
– Amanheça, por favor!

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Protagonista

Perdoa meu conto desesperado
O outro é mero figurante
Porque de minha história sou a atriz
Da peça em mim, fulgurante
Assim não me perco, nem por um tris

Sou fênix na multidão
Uma intensa alegria ressurgida
Cortada toda sofreguidão
E pelo sagrado, ungida

Assim sou forte muralha
Cuidado se queres adentrar-me
Porque não tenho fogo de palha

Uma vez dentro, corres perigo
Num turbilhão, apaixonar-se
E fazer de mim, teu abrigo!

Gisely Poetry aka @GiselyPoletto

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Em Galego-Portugués:

San Amaro de Oira,
feito de pau d’amieiro
hirman d’as miñas chanquiñas
criado n-o meu lameiro.

San Amaro de Oira é o protagonista dunha das cantigas recopiladas por José Casal Lois no seu Colección de cantares gallegos, na que se satiriza ó santo:

Hoxe cantárona na festa do San Amaro de Oira, no Ourense, Espanha.
Deixo eiquí unha fotografía do santo do poema (fotografía minha)

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